terça-feira, 10 de agosto de 2010

VIDAS PASSAGEIRAS - por Leo Nishihata

     Nishihata wa, kawateru miyoji?”

     Sabia que isso iria acontecer. A primeira coisa que os idosos de origem japonesa perguntam para alguém da mesma etnia é pelo sobrenome, emendando na seqüência um rápido teste de proficiência no idioma. Olho desesperado para o filho do meu interlocutor, que traduz: “Nishihata, sobrenome diferente, né?”.Realmente, meu sobrenome é raro, único entre 1,2 milhãode descendentes no Brasil. Em Assaí, cidade do norte do Paraná onde 14% dos 20 mil habitantes possuem ascendência japonesa, nunca houve nenhum Nishihata. Mais que isso: quase não há descendentes com a minha idade, apenas um enorme vácuo entre crianças e velhos. Para piorar, não falo uma palavra de japonês. A sensação de estranheza é total, sinto-me como o mais fajuto de todos os sanseis. Mas eis que, como mágica, o monge budista Takanori Imai diz em português razoável, cheio de sotaque: “Já conheci um Nishihata em Tupã, muito tempo atrás”. A ficha cai: é meu avô, só pode ser meu avô, o falecido Bunji Nishihata, comerciante nessa cidade do noroeste paulista nos distantes anos 1950. Explodo de entusiasmo, descrevo em ritmo vertiginoso a história da minha família, enquanto o monge me ouve tranqüilo, calado, com um sorriso que parecia dizer “calma, rapaz, eu sei que você é um dos nossos”.
     Assaí é assim. Um resquício do passado distante, um tanto hermético, mas que surpreende e emociona ao dialogar com o presente. Uma experiência muito mais intensa do que passear pelas ruas da Liberdade, em São Paulo, por exemplo. Pois se o famoso bairro oriental da capital paulista marca a presença japonesa nas grandes cidades, Assaí resgata uma época anterior, comum a todas as famílias de imigrantes, quando os navios desembarcavam trabalhadores direto para as fazendas de café e algodão. A cidade surgiu em 1932, quando as levas vindas do Japão desde 1908 já haviam acumulado economias suficientes para adquirir terras. Nos arredores da cidade de Jataí, a 40 quilômetros de Londrina, o solo era coberto por perobas que hoje só são encontradas nas casas de madeira erguidas em regime de mutirão, com encaixes que dispensam pregos. A parte mais acidentada da região foi escolhida comosede da colônia, chamada Assahi (“Sol Nascente” em japonês), depois abrasileirada para Assaí. Sem dominar o português e com nenhuma infra-estrutura pública, os japoneses implantaram uma organização independente, que dividiu as terras cultiváveis em 12 seções batizadas com nomes de madeiras, cada uma com seu líder, seu núcleo de famílias, sua escola e seu kaikan, a sede social.
     “Peroba” foi a primeira delas, e a família Yaoki, uma das pioneiras. Na época uma criança, Shimizu Yaoki ainda vive no mesmo local. De lá observamos o kaikan da seção, antigo palco de festas, reuniões e eleições que definiam o representante de “Peroba” perante a Laca (Liga das Asso-ciações Culturais), o centro nervoso da comunidade. A própria Assaí só foi reconhecida como município 11 anos depois da criação desse sistema, em 1943. Das 70 famílias japonesas que viviam na seção restam nove, mas a organização continua a mesma: qualquer comunicado da Laca é transmitido para os líderes locais, e estes divulgam a informação para o restante do pessoal.
     Cairo Kogushi, de 64 anos, um sorridente e comunicativo filho de japoneses, é o atual presidente da Laca. Cairo-san (todos em Assaí adicionam o sufixo san ao nome dos amigos) conversa com Shimizu-san a respeito das comemorações pelos 76 anos de Assaí. A temática da festa será os 100 anos de imigração japonesa. Em frente ao kaikan desativado, hoje habitado por um par de corujas-brancas, os dois lembram de quando a grande diversão da comunidade eram as exibições itinerantes de cinema japonês, feitas por um operador de projetor e um benshi (intérprete) que se encarregava de dublar todas as vozes dos filmes (homens, mulheres e crianças) em tempo real – não por acaso, os benshis eram considerados os grandes artistas da época. Feito de madeira, o kaikan será todo desmontado e transferido para a cidade, onde poderá preservar uma parte da história prestes a ser esquecida pelos mais jovens.
     O silêncio do rebatedor
     O senhor Shimizu possui o rosto vincado e escuro, típico de quem passou a vida trabalhando na terra, debaixo do sol forte. Aparenta cada um dos seus 78 anos, mas seu vigor é invejável: no final de semana seguinte, estará participando da 69ª edição do Campeonato Assaiense de Atletismo. Especializado em arremesso de peso, ele é capaz de lançar um martelo de 5 quilos a 32 metros de distância. Seu concorrente na categoria de veteranos, porém, é o atleta mais vitorioso da cidade: Mário Hurakuri, 59 anos, invejável físico de garoto e mais de 250 medalhas e troféus conquis-tadas em 42 anos de competição.Tudo em Assaí remete à longevidade – inclusive os recordes.
     Mário, especialista no plantio de abacates, tem a melhor marca intercolonial dos 800 metros rasos desde 1971. No campeonato da cidade, o recorde dos 5 mil metros não é batido desde 1947! O torneio, uma seletiva para os jogos paranaenses, reunia mais de mil atletas locais em seu auge. Hoje, o número caiu para menos de 300. Mário Hirakuri, que já disputou pan-americanos da colônia japonesa no Peru, sabe que o esvaziamento é inevitável. “É um fenômeno natural, poucos jovens se interessam. Além disso, quase todo mundo só pensa em ir para o Japão trabalhar”, lamenta.“Não tenho nem mais passageiro para levar ao aeroporto de Londrina”, confirma João Ono, taxista na cidade desde 1960.
     Dos milhares de assaienses que foram ao Japão atrás de estabilidade financeira, dois acabaram de voltar após 17 anos vivendo como dekasseguis. São o casal Alice e Massakatu Konda.“Aqui a cidade é uma família, o céu fica mais perto da gente, dá para ver as estrelas”, explica Alice, num belo final de tarde. Seu marido, Massakatu, mais conhecido como Candinho, já foi um dos melhores rebatedores de beisebol do Brasil. O beisebol (que entre os descendentes é chamado de yakyu) deu a Assaí um time respeitável, capaz de rivalizar e bater cidades muito maiores, como Maringá, Londrina, Bastos, Mogi das Cruzes e até São Paulo. Ex-jogador da seleção brasileira e extreinador do time da cidade, Massakatu não se considera um saudosista. Porém, quando nos acompanhou até o campo de beisebol local, praticamente abandonado, com arquibancadas desabando, placar em ruínas e nenhuma marcação, seu corpo paralisou. Há 17 anos ele não entrava no local. Seus olhos fitaram todo o cenário demoradamente, num silêncio profundo, só interrompido por Clóvis Yuhara, seu antigo jogador. “Acabou Candinho, acabou”, consolou Clóvis.
     O beisebol em Assaí terminou por falta de praticantes – algo inacreditável para as lembranças de Massakatu, mas compreensível dentro de um processo de esvaziamento do qual ele mesmo participou. Logo surgem memórias do título brasileiro de 1962, conquistado em São Paulo. “Na volta, desfilamos a pé pela avenida, com os uniformes ainda sujos. O comércio fechou”, rememora Massakatu, que conheceu sua esposa na mesma época, quando Alice foi eleita a Miss Yakyu da cidade. Finalmente, o veterano jogador treina – e acerta – algumas rebatidas lançadas por Clóvis. Enquanto isso, sua mulher assiste a tudo, sentada na mesma arquibancada que freqüentou por anos, com a expressão de quem está vendo a vida inteira passar ali, na sua frente. “Isto aqui ficava lotado de gente, até no barranco. Ele era um ídolo, todas as meninas queriam namorá-lo”, diz Alice, feliz com a lembrança.
     O auge do atletismo e do beisebol em Assaí coincide com o esplendor financeiro da cidade, na década de 1960,quando ficou conhecida como a capital brasileira do algodão. Levas de nordestinos chegaram na época em caminhões paus-de-arara para trabalhar nas plantações, elevando a população para um pico de 50 mil habitantes nos anos 1970, mais que o dobro do número atual. Desde então, Assaí nunca mais foi tão japonesa. Ainda assim, bastam alguns minutos de caminhada para encontrar 21 estabelecimentos com nomes japoneses nos 300 metros da única avenida da cidade. O assaiense pode tranqüilamente passar a vida fazendo compras no Supermercado Sato, cortar as madeixas na Midori Cabeleireira, trocar os óculos na Ótica Toda, consertar o carro no Auto-elétrico Maedinha e até encomendar o caixão na Funerária Fukugawa.
     Mesmo nos estabelecimentos aparentemente ocidentais, como o Bar Nossa Senhora de Aparecida, nota-se que a mulher servindo pinga é japonesa, os jogadores de sinuca conversam em japonês e até o apostador do jogo de bicho tem olhos puxados. Papeando nesse bar, chama a atenção Carlos José da Sil-va, o alegre Carlão, um pernambucano com botas de couro, chapéu de vaqueiro e vistosa camiseta azul da seleção japonesa de futebol. “Fui o primeiro negro a casar com uma japonesa aqui na cidade, em 1975”, explica ele. Se na época a simples mistura com ocidentais ainda era polêmica, o relacionamento de uma japonesa com um negro atiçou as más linguas de Assaí. “Diziam que com negro não podia. Pois fugi com ela para Londrina, casamos no cartório e estamos juntos até hoje”, conta Carlão, corretor de imóveis, pai de quatro filhos mestiços, três deles trabalhando no Japão. “Meu sonho é ir pra lá também, viu?”, confessa. Assim como Carlão e a maioria dos pais de Assaí, a dona do bar, Aparecida Tagawa, tem sete filhos dekasseguis.
     A ausência de jovens é flagrante entre os voluntários encarregados de montar o aparato para a festa do aniversário da cidade. Veteranos diretores da Laca assumem o trabalho braçal e vão distribuíndo as faixas, barracas, palanques e luminárias. Nas escolas de língua japonesa (nihongô), boa parte dos alunos é de adultos prestes a embarcar para o trabalho no Japão. Por tudo isso, a atividade comunitária do agricultor Teruhiko Kumata, 78 anos, é talvez a mais desafiadora, honrada – e melancólica. Diretor de educação da Laca, sua missão é preservar a língua japonesa e toda uma cultura educacional para os mais jovens. “Fomos ensinados a trabalhar não para nós mesmos, mas para os outros, para o mundo”, explica o japonês que veio ao Brasil com 6 anos de idade. Na época, as professoras de Kumata tinham de brigar para que os alunos não falassem japonês durante a aula.
    Nos últimos dez anos, porém, o número de alunos de uma das escolas de nihongô caiu de 100 para apenas 19. “Os filhos de descendentes mudaram bastante, hoje possuem vontade própria. Não chegam a ser rebeldes, mas não admitem imposições dos mais velhos”, constata a professora Maria Antônia Ayako Izu.
     O velho kamikaze
    A poucos quilômetros dali, na seção rural “Palmital”, vive o exemplo mais radical da educação japonesa: o produtor de frutas Kikuo Furuta. Nascido em 1930 em Wakaiama, no Japão, ele fez parte da geração que, em plena Segunda Guerra Mundial, foi doutrinada nos moldes da tokkotai – a juventude cujo lema era dar a vida ao país e ao imperador, e que forneceu o grosso dos aspirantes a kamikazes. Furuta,cujo sorriso fácil e rugas enormes raramente o permitem ficar de olhos abertos, só consegue reavivar suas lembranças quando fala em japonês. “Tudo na nossa sociedade nos levava a entrar para a tokkotai.
     Minha cidade foi atacada e quase toda destruída por bombardeiros. Via mortos empilhados no meio da roça.” No dia 15 de agosto de 1945, quando Hiroíto fez o primeiro pronunciamento público de um imperador japonês na história, declarando a rendição do Japão e negando o seu caráter divino, o impacto no adolescente Furuta foi tão devastador que ele passou os próximos dez anos vagando sem rumo, até que um tio lhe sugerisse viajar para o Brasil. Hoje, ele enaltece a liberdade do modo de vida brasileiro, e a oportunidade de ter passado sua vida trabalhando no campo – algo quase impossível de se conseguir no minúsculo território japonês.
     É no entorno de Assaí, nos caminhos para as seções rurais, que se encontram as grandes belezas da região. Raramente vemos pasto – em vez disso, plantações de trigo parecidas com campos de futebol ondulados e cafezais milimetricamente organizados contrastam com o branco límpido dos campos de algodão e a estrutura suspensa dos pés de uva sem sementes. “Depois de tanto tempo, continuo me emocionando, principalmente nas noites de lua cheia”, diz Cairo Kogushi, o presidente da Laca, morador de “Palmital”. Sua esposa, dona Yoko, nos prepara um verdadeiro banquete com delícias locais: salada fresquinha, cozido de legumes orientais, tofu (queijo de soja) caseiro, uma seleção de vegetais e frutas para o preparo de temakis (sushis em forma de cone) e um delicioso missoshiru (sopa de soja), finalizado por laranjas e caquis colhidos na hora.
     Funk japonês
     Um dos filhos do casal, Lídio, é dos raríssimos jovens assaienses que escolheram como destino continuar o trabalho dos pais no campo. Formado em agronomia e com estágio em fazendas da Califórnia, nos EUA, Lídio explica que seu trabalho é fruto da esperança. “Nós lidamos com a natureza, e cada ano é uma história diferente. Quando plantamos, torcemos para dar certo. E se tudo vai bem e a colheita rende, a sensação é maravilhosa.”
     A maioria, porém, segue para Londrina, Curitiba, São Paulo ou mesmo para o Japão logo após completar 18 anos. As associações de moços, tão importantes em décadas passadas, hoje não existem mais. As únicas ações capazes de reunir e entusiasmar a juventude são a banda de rock Hikari (formada por descendentes, não foge à regra local de ter um coordenador) e o taikô, a música japonesa tradicional tocada com tambores de diversos tamanhos. Quando a festa pelos 76 anos da cidade começa, jovens vestidos de quimono fixam os pés no chão, erguem os braços e iniciam o batuque ritmado do taikô. “É o som do coração”, exulta Vanessa Yoshida, uma das organizadoras. Logo as mulheres e homens da região, todos vestidos a caráter, organizam-se para a dança do bon odori, uma seqüência rígida de passos contidos, singelos e repetitivos, que se desenrola em círculos ao redor dos tambores. A progressão é lenta: para cada três passos adiante, seguem-se dois para trás, acompanhados por movimentos suaves de mãos e braços. As batidas em alto volume mexem com o corpo e atraem pessoas de todas as cores e nacionalidades. Até adolescentes com camisetas pretas da banda Iron Maiden entram na roda. Os movimentos são sutis, mas surpreendentemente catárticos, e quando percebemos o ritual já dura mais de duas horas, sem parar. É quando os mais velhos retiram-se para descansar, e as batidas tornam-se mais rápidas e ousadas, no estilo chamado de matsuri dance – uma legítima invenção do norte do Paraná. Agora, os jovens na faixa dos 13 aos 18 anos dominam não apenasos tambores, mas a roda de dança. Celulares com câmeras disparam a todo momento, e logo surgem as primeiras palmas da mão, giros de corpo, mãozinhas no joelho, ligeiras reboladas de cintura, dedinhos para cima, requebrando os quadris. Um desavisado poderia jurar que se trata de um funk, mas não – é apenas a história ditando o seu ritmo inevitável.